Varreduna, 2021
2 fotografias sobre papel algodão.
1m x 1,4m
“A duna móvel sendo movida pelo antropocentrismo. A
natureza é fluida, dinâmica, tem seus caminhos. Vida é
movimento. Estagnação é morte. Não por acaso, a pista
que arregaça o caminho da duna, é fixa. Uma
construção que não prevê os fluxos naturais onde está
imersa, é um tiro no pé.”
Naiana Magalhães
A duna atravessou a pista ou a pista que atravessou a duna? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Assim
como essa pergunta metafórica, a resposta da primeira, depende da perspectiva de quem vê. No parque
ambiental das dunas da Sabiaguaba, em Fortaleza-CE, há um conflito entre prefeitura e o órgão ambiental, a
Semace. A duna está avançando a pista CE-010. O órgão ambiental não deixa remover nem um milímetro de
areia da duna, ao que a prefeitura exige a retirada da areia que avança sobre um lado da estrada pois pode
provocar acidentes. Mas este conflito tem uma história pregressa.
O tempo presente da Duna poderia ter tido um desfecho diferente. Antes da pista ser feita, a consultora ambiental
da época discutiu com o engenheiro da Prefeitura de Fortaleza, tentando convencê-lo a não passar a pista ali.
Após vários argumentos, ao final o engenheiro profere a frase: “Minha querida, esse negócio de ecologia é poesia”,
e a pista assim foi feita.
Hoje, existem propostas de ecodutos e túneis para que a duna possa seguir seu caminho natural sem
prejudicar o trânsito, basta vontade política. Porém, aquele território está atravessado por diversos interesses
e vetores sociais. Trata-se de um território cobiçado por construtoras e turismo predatório, mas também é
habitado por comunidades locais, e muito visitado por pessoas de todos os bairros e classe sociais de
Fortaleza. Em especial, devotos de igrejas evangélicas que lotam os ônibus e topics todo sábado à noite para
rezar em cima da duna, como se ela fosse o Monte Sinai, uma terra sagrada e prometida, com vista para toda
a cidade e sertão.
Durante algumas das minhas visitas à duna, estavam
os caminhões da Prefeitura retirando a areia da pista.
Conversei com os trabalhadores que faziam o serviço.
Relataram que descarregavam a areia para dentro do
parque mesmo, um pouco mais atrás. Ele reiterou que
não adiantava tirar a areia, que ela ia cair de volta.
Como iam domar uma montanha de areia com
dezenas outras dunas atrás dela, soprando para o
mesmo lugar? Registrei a duna esgarçada pela
retroescavadeira. Algumas partes desabavam. Nos
sulcos que formaram, quando o vento batia escorria a
areia fina, parecendo água. Acumulava embaixo
novamente em formato de cone. Era belo, delicado e
triste. Uma beleza melancólica.
Como poetizar o horror? A ironia sutil talvez possa contribuir nesse sentido. O belo e o sutil por si só não
conseguiriam dar conta de poetizar um lugar com tamanho conflito, pois o risco de “glamourizar” e se isentar, ou
fechar os olhos para o que ocorre ali é grande. Ficaria desconectado dos fatos, poderia ser qualquer duna. A
experiência da duna por si já é o sublime e a experiência do tempo dentro e fora dele. Falar de qualquer duna pode
ser interessante para tocar o sensível e abri-lo para estas questões, mas quero falar dessa duna, da pista que passou
por ela.
Trazer a ironia junto do belo e sutil faz uma quebra nesta
percepção de puro deleite estético. Em algum momento
ela puxa atenção para se dar conta da tragédia, por
caminhos não racionais, quando você já está envolvido
com o sublime.
Varrer a duna. Expressão metafórica comum de quem
está do lado que enxerga a pista atravessando o seu
caminho, e não o contrário. A vassoura surge como o
arauto da ação, em contraste com as escavadeiras que
executam a tarefa de fato, em outra escala.
A vassoura proclama o que está sendo feito pelo poder oficial. Varrer a duna (real ou fictício) chega a ser o absurdo,
o surreal, sem sentido. Ela não pode ser varrida, ela é imensa. Ou pode? O ser-humano move montanhas, depende
de sua fé. E articulação.
Propus uma intervenção na duna com as vassouras. Além da relação irônica e direta com a expressão linguística, a
vassoura traz uma dimensão ritualística da bruxaria, ligada ao feminino, conectada à terra e à natureza. Estamos
jogando ali um feitiço. Os evangélicos que rezam no alto da duna tem certa razão, a montanha é sagrada. E não só
para os evangélicos. Para os indígenas, a montanha tem um espírito. Ao dar valor espiritual ao monte, ela passa a
ser consagrada e consequentemente, protegida. Aí está a sabedoria dos guardiões da terra.
O uso do preto e branco, escolhi para conversar com a
referência da fotografia moderna, que traz o ar do
sublime e do belo, presentes na estética do cineasta
norte-americano Orson Welles e do fotógrafo cearense
Chico Albuquerque (seu assistente na época) que
construíram parte da nossa memória cultural litorânea,
haja vista seus trabalhos com os jangadeiros em nossas
paisagens praieiras nos anos 40.